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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES NO SIMPÓSIO "NOVAS FORMAS DE FRATERNIDADES SOLIDÁRIA"

Casina Pio IV
Quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

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Senhoras e senhores, boa tarde!

Quero expressar-vos a minha gratidão por este encontro. Vamos aproveitar este novo começo de ano para construir pontes, pontes que favoreçam o desenvolvimento de uma visão solidária dos bancos, das finanças, dos governos e das decisões económicas. Precisamos de muitas vozes capazes de pensar, de uma perspetiva multifacetada, sobre as várias dimensões de um problema global que afeta os nossos povos e as nossas democracias.

Gostaria de começar com um facto. O mundo é rico e não obstante isso os pobres aumentam à nossa volta. De acordo com relatórios oficiais, o rendimento mundial deste ano será de quase 12.000 dólares per capita. No entanto, centenas de milhões de pessoas ainda vivem em extrema pobreza e carecem de alimentação, casa, cuidados médicos, escolas, eletricidade, água potável e serviços de saneamento adequados e indispensáveis. Calcula-se que aproximadamente cinco milhões de crianças com menos de cinco anos irão morrer de pobreza este ano. Outras 260 milhões serão privadas de educação devido à falta de recursos, guerras e migrações. Isto num mundo rico, porque o mundo é rico.

Esta situação levou milhões de pessoas a serem vítimas do tráfico e de novas formas de escravidão, como o trabalho forçado, a prostituição e o tráfico de órgãos. Eles não têm direitos nem garantias; nem sequer podem desfrutar da amizade ou da família.

Estas realidades não devem ser motivo de desespero, não, mas de ação. Trata-se de realidades que nos movem a fazer algo.

A principal mensagem de esperança que quero partilhar convosco é precisamente esta: trata-se de problemas resolúveis e não de falta de recursos. Não há um determinismo que nos condene à desigualdade universal. Deixai-me repetir: não estamos condenados à desigualdade universal. Isto torna possível uma nova forma de assumir os acontecimentos, que permite encontrar e gerar respostas criativas diante do sofrimento evitável de tantas pessoas inocentes; o que implica aceitar que, em não poucas situações, enfrentamos a falta de vontade e decisão para mudar as coisas e, principalmente, as prioridades. Pedem-nos que sejamos capazes de nos deixar desafiar, de deixar cair as escamas dos nossos olhos e ver estas realidades sob uma nova luz, uma luz que nos mova para a ação.

Um mundo rico e uma economia vibrante podem e devem acabar com a pobreza. Podem ser geradas e estimuladas dinâmicas capazes de incluir, alimentar, curar e vestir os últimos da sociedade, em vez de os excluir. Devemos escolher ao quê e a quem dar prioridade: se promovemos mecanismos socioeconómicos humanizadores para toda a sociedade ou, pelo contrário, incentivamos um sistema que acaba por justificar certas práticas que só conseguem aumentar o nível de injustiça e violência social. O nível de riqueza e técnica acumulado pela humanidade, assim como a importância e o valor que os direitos humanos adquiriram, já não permitem desculpas. Cabe a nós estarmos cientes de que todos somos responsáveis. Isto não significa que somos todos culpados, não; somos todos responsáveis para fazer algo.

Se há pobreza extrema no meio da riqueza — também riqueza extrema — é porque permitimos que o fosso se alargue até se tornar o maior da história. Estes são números quase oficiais: as 50 pessoas mais ricas do mundo possuem um património equivalente a 2, 2 biliões de dólares. Só essas cinquenta pessoas poderiam financiar os cuidados médicos e educação de todas as crianças pobres do mundo, tanto através de impostos, iniciativas filantrópicas ou ambos. Estas cinquenta pessoas poderiam salvar milhões de vidas todos os anos.

Eu chamei à globalização da indiferença de “inação”. São João Paulo II chamou-lhe: estruturas do pecado. Tais estruturas encontram uma atmosfera propícia para a sua expansão sempre o bem comum é reduzido ou limitado a determinados setores ou, no caso de sermos chamados a fazê-lo, quando a economia e as finanças se tornam um fim em si mesmas. É a idolatria do dinheiro, da ganância e da especulação. E esta realidade soma-se agora à vertigem tecnológica exponencial, que aumenta a passos nunca antes vistos a velocidade das transações e a possibilidade de produzir lucros concentrados sem estarem relacionados com os processos produtivos ou com a economia real. A comunicação virtual encoraja este tipo de situações.

Aristóteles celebra a invenção da moeda e o seu uso, mas condena fortemente a especulação financeira porque nela «o próprio dinheiro se torna produtivo, perdendo a sua verdadeira finalidade que é facilitar o comércio e a produção» (Política, I, 10, 1258 b).

De modo semelhante, e seguindo a razão iluminada pela fé, a doutrina social da Igreja celebra formas de governo e bancos — muitos dos quais foram criados sob a sua proteção: é interessante ver a história das casas de penhores, dos bancos criados para promover e colaborar — quando cumprem o seu objetivo, que é, em última análise, a busca do bem comum, da justiça social, da paz, assim como do desenvolvimento integral de cada indivíduo, de cada comunidade humana e de todas as pessoas. Contudo, a Igreja adverte que estas instituições benéficas, tanto públicas como privadas, podem cair em estruturas de pecado. Estou a usar a qualificação de São João Paulo II.

As estruturas de pecado incluem hoje em dia repetidos cortes fiscais para as pessoas mais ricas, muitas vezes justificados em nome do investimento e do desenvolvimento; paraísos fiscais para lucros privados e empresariais; e, claro, a possibilidade de corrupção por parte de algumas das maiores corporações do mundo, não raro em consonância com algum setor político dominante.

Todos os anos centenas de biliões de dólares, que deveriam ser pagos em impostos para financiar a saúde e a educação, acumulam-se em contas em paraísos fiscais, impedindo assim a possibilidade de desenvolvimento digno e sustentável de todos os atores sociais.

As pessoas empobrecidas dos países altamente endividados suportam uma carga fiscal esmagadora e cortes nos serviços sociais enquanto que os seus governos pagam dívidas contraídas insensível e insustentavelmente. De facto, a dívida pública contraída, em não poucos casos para promover e incentivar o desenvolvimento económico e produtivo de um país, pode tornar-se um fator que danifica e prejudica o tecido social. Quando acaba por ser orientada para outro propósito.

Assim como existe uma coirresponsabilidade por este dano à economia e à sociedade, existe também uma inspiradora e esperançosa corresponsabilidade para instaurar um clima de fraternidade e de confiança renovada que abranja a busca de soluções inovadoras e humanizadoras.

É bom lembrar que não existe uma lei mágica ou invisível que nos condene ao congelamento ou à paralisia diante da injustiça. E menos ainda existe uma racionalidade económica que suponha que a pessoa humana é simplesmente uma acumuladora de benefícios individuais não relacionados com a sua condição de ser social.

As exigências morais de São João Paulo II em 1991 são hoje surpreendentemente atuais: «o princípio de que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um pagamento, quando esse levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacrifícios insuportáveis. Nestes casos, é necessário — como, de resto, está sucedendo em certa medida — encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida, compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso» (Carta enc. Centesimus annus, 35).

De facto, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável aprovados em unanimidade por todas as nações também reconhecem este ponto — é um ponto humano — e apelam a todos os povos para que «ajudem os países em desenvolvimento a alcançar a sustentabilidade da dívida a longo prazo através de políticas coordenadas para promover o financiamento da dívida, o redução da dívida e a reestruturação da dívida, na medida do possível, e para enfrentar o problema da dívida externa dos países pobres altamente endividados, a fim de reduzir a angústia da dívida» (Objetivo 17.4).

É nisto que devem consistir as novas formas de solidariedade que hoje nos convocam aqui, se pensarmos no mundo dos bancos e das finanças: ajuda ao desenvolvimento das populações desfavorecidas e nivelamento dos países que gozam de um certo padrão e nível de desenvolvimento com aqueles que não são capazes de garantir o mínimo necessário aos seus habitantes. Solidariedade e economia para a união, não para a divisão com consciência reta e clara da corresponsabilidade.

Praticamente daqui é necessário afirmar que a maior estrutura de pecado, ou a maior estrutura de injustiça, é a própria indústria da guerra, uma vez que é dinheiro e tempo ao serviço da divisão e da morte. O mundo perde biliões de dólares por ano em armas e violência, somas que acabariam com a pobreza e o analfabetismo se pudessem ser reencaminhadas. Na verdade, Isaías falou em nome de Deus por toda a humanidade, quando previu o dia do Senhor em que se «transformarão as espadas em relhas de arados, e as lanças, em foices» (cf. Is 2, 4). Sigamo-lo!

Há mais de setenta anos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas comprometeu todos os seus Estados Membros a cuidar dos pobres nas suas terras e casas, e em todo o mundo; isto é, na casa comum, o mundo inteiro é a casa comum. Os governos reconheceram que a proteção social, a renda básica, os cuidados de saúde para todos e a educação universal eram inerentes à dignidade humana fundamental e, portanto, aos direitos humanos fundamentais.

Estes direitos económicos e um ambiente seguro para todos são a medida mais básica da solidariedade humana. E a boa notícia é que embora em 1948 esses objetivos não estivessem imediatamente ao alcance, hoje sim, com um mundo muito mais desenvolvido e interligado. Progrediu-se nisto.

Vós, que tão gentilmente vos reunistes aqui, sois os líderes financeiros e especialistas económicos do mundo. Juntamente com os vossos colegas, ajudais a estabelecer regras fiscais globais, a informar o público global sobre a nossa condição económica e a aconselhar os governos do mundo sobre os orçamentos. Sabeis em primeira mão quais são as injustiças da nossa economia global atual, ou as injustiças de cada país.

Trabalhemos juntos para acabar com estas injustiças. Quando as agências multilaterais de crédito financiam as diferentes nações, é importante ter em conta os altos conceitos de justiça fiscal, os orçamentos públicos responsáveis do seu endividamento e, sobretudo, a promoção efetiva e protagonista dos mais pobres na trama social. Recordai-vos da vossa responsabilidade de fornecer assistência para o desenvolvimento a nações empobrecidas e a redução da dívida das nações altamente endividadas. Recordai-vos do imperativo de impedir as mudanças climáticas causadas pelo homem, como todas as nações prometeram, para que não destruamos os alicerces da nossa Casa Comum.

Uma nova ética significa estar consciente da necessidade de que todos se comprometam a trabalhar em conjunto para fechar paraísos fiscais, impedir a evasão e a lavagem de dinheiro que roubam à sociedade, bem como recordar às nações a importância de defender a justiça e o bem comum sobre os interesses das empresas e multinacionais mais poderosas — que acabam por sufocar e impedir a produção local. O tempo presente exige e requer uma mudança de uma lógica insular e antagónica como único mecanismo autorizado para a solução de conflitos, para outra lógica, capaz de promover a interconexão que favoreça uma cultura de encontro, onde se renovem as bases sólidas de uma nova arquitetura financeira internacional.

Neste contexto onde o desenvolvimento de alguns setores sociais e financeiros atingiu níveis nunca antes vistos, como é importante recordar as palavras do Evangelho de Lucas: «A quem muito foi dado, muito será exigido» (12, 48). Como é inspirador ouvir Santo Ambrósio, que pensa com o Evangelho: «Vós [ricos] não doais o que é vosso aos pobres [quando fazeis caridade], mas dais-lhes o que é deles. Pois, a propriedade comum dada em uso para todos, vós estais a usá-la para vós mesmos» (Nabot 12, 53). Este é o princípio do destino universal dos bens, a base da justiça económica e social, assim como do bem comum.

Estou contente com a vossa presença aqui hoje. Celebramos a oportunidade de saber que somos parceiros na obra do Senhor que pode mudar o curso da história em benefício da dignidade de cada pessoa hoje e amanhã, especialmente daqueles que são excluídos, e a favor do grande bem da paz. Lutamos juntos, com humildade e sabedoria, para servir a justiça internacional e intergeracional. Temos esperança ilimitada no ensinamento de Jesus de que os pobres de espírito são bem-aventurados e felizes, porque deles é o Reino do Céu (cf. Mt 5, 3) que começa aqui e agora.

Muito obrigado! E por favor, vou fazer um pedido, não um empréstimo: não vos esqueçais de rezar por mim, porque este trabalho não é nada fácil para mim, e invoco abundantes bênçãos sobre vós, e sobre o vosso trabalho.

 



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