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VISITA DO PAPA FRANCISCO A NÁPOLES
POR OCASIÃO DO SIMPÓSIO “A TEOLOGIA DEPOIS DA VERITATIS GAUDIUM
NO CONTEXTO DO MEDITERRÂNEO”

DISCURSO DO SANTO PADRE

Praça diante da Faculdade de Teologia da Itália Meridional
Sexta-feira, 21 de junho de 2019

[Multimídia]


 

Estimados estudantes e professores
Amados irmãos Bispos e Sacerdotes
Senhores Cardeais!

Sinto-me feliz por me encontrar hoje convosco e por participar neste Congresso. Retribuo de coração a saudação do querido irmão, o Patriarca Bartolomeu, um grande precursor da Laudato si’ — há anos precursor — que quis contribuir para a reflexão com uma mensagem pessoal. Agradeço a Bartolomeu, irmão amado.

O Mediterrâneo é desde sempre lugar de trânsito, de intercâmbio e por vezes também de conflitos. Conhecemos muitos. Este lugar hoje apresenta-nos uma série de questões, muitas vezes dramáticas. Elas podem ser traduzidas nalgumas perguntas que nos fizemos no encontro inter-religioso de Abu Dhabi: como nos preservarmos reciprocamente na única família humana? Como alimentar uma convivência tolerante e pacífica que se traduza em fraternidade autêntica? Como fazer prevalecer nas nossas comunidades o acolhimento do próximo e de quem é diverso de nós porque pertence a uma tradição religiosa e cultural diversa da nossa? Como podem as religiões ser vias de fraternidade e não muros de separação? Estas e outras questões pedem para serem interpretadas em vários níveis, e exigem um compromisso generoso de escuta, de estudo e de confronto para promover processos de libertação, de paz, de fraternidade e de justiça. Devemos convencer-nos: trata-se de dar início a processos, não de fazer definições de espaços, ocupar espaços... iniciar processos.

Uma teologia do acolhimento e do diálogo

Durante este Congresso primeiro analisastes contradições e dificuldades no espaço do Mediterrâneo, e depois questionastes-vos sobre soluções melhores. A este propósito, perguntais-vos qual teologia seja adequada no contexto no qual viveis e trabalhais. Diria que a teologia, particularmente neste contexto, está chamada a ser uma teologia do acolhimento e a desenvolver um diálogo sincero com as instituições sociais e civis, com os centros universitários e de pesquisa, com os líderes religiosos e com todas as mulheres e homens de boa vontade, para a construção na paz de uma sociedade inclusiva e fraterna e também para a preservação da criação.

Quando no Prefácio da Veritatis gaudium se menciona o aprofundamento do querigma e o diálogo como critérios para renovar os estudos, pretende-se dizer que eles estão ao serviço do caminho de uma Igreja que se coloca cada vez mais no centro a evangelização. Não à apologética, não aos manuais — como ouvimos — evangelizar. No centro está a evangelização, que não significa proselitismo. No diálogo com as culturas e as religiões, a Igreja anuncia a Boa Nova de Jesus e a prática do amor evangélico que Ele prega como uma síntese de todo o ensinamento da Lei, das visões dos Profetas e da vontade do Pai. O diálogo é antes de tudo um método de discernimento e de anúncio da Palavra de amor que é dirigida a cada pessoa e que deseja habitar no coração de cada um. Só na escuta desta Palavra e na experiência do amor que ela comunica se pode discernir a atualidade do querigma. O diálogo, entendido deste modo, é uma forma de acolhimento.

Gostaria de reafirmar que «o discernimento espiritual não exclui as contribuições de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais; mas transcende-as. Não bastam sequer as normas sábias da Igreja. Lembremo-nos sempre de que o discernimento é uma graça», um dom. «Em suma, o discernimento leva à própria fonte da vida que não morre, isto é, conhecer o Pai, o único Deus verdadeiro, e a quem Ele enviou, Jesus Cristo (cf. Jo 17, 3)» (Exort. ap. Gaudete et exsultate, 170).

As escolas de teologia renovam-se com a prática do discernimento e com um modo de proceder dialógico capaz de criar um clima espiritual e de prática intelectual correspondente. Trata-se de um diálogo quer na colocação dos problemas quer na busca das soluções. Um diálogo capaz de integrar o critério vivo da Páscoa de Jesus com o movimento da analogia, que lê na realidade, na criação e na história nexos, sinais e referências teologais. Isto comporta a admissão hermenêutica do mistério do caminho de Jesus que o leva à cruz e à ressurreição e ao dom do Espírito. Assumir esta lógica jesuana e pascal é indispensável para compreender como a realidade histórica e criada é interrogada pela revelação do mistério do amor de Deus. Daquele Deus que na história de Jesus se manifesta — todas as vezes e dentro de qualquer contradição — maior no amor e na capacidade de recuperar o mal.

Ambos os movimentos são necessários, complementares: um movimento de baixo para o alto que pode dialogar, com sentido de escuta e discernimento, com qualquer instância humana e histórica, tendo em consideração toda a espessura do humano; e um movimento do alto para baixo — onde “o alto” é o de Jesus na cruz — que permite, ao mesmo tempo, discernir os sinais do Reino de Deus na história e compreender de maneira profética os sinais do anti-reino que desfiguram a alma e a história humana. É um método que consente — numa dinâmica constante — confrontar-se com qualquer instância humana e compreender qual é a luz cristã que ilumina as dobras da realidade e quais energias o Espírito do Crucificado Ressuscitado está a suscitar, de cada vez, aqui e agora.

O modo de proceder dialógico é o caminho para chegar onde se formam os paradigmas, os modos de sentir, os símbolos, as representações das pessoas e dos povos. Chegar lá — como “etnógrafos espirituais” da alma dos povos, digamos — para poder dialogar em profundidade e, se for possível, contribuir para o seu desenvolvimento com o anúncio do Evangelho do Reino de Deus, cujo fruto é a maturação de uma fraternidade cada vez mais dilatada e inclusiva. Diálogo e anúncio do Evangelho que podem acontecer nos modos indicados por Francisco de Assis na Regra não bulada, precisamente a seguir à sua viagem ao oriente mediterrâneo. Para Francisco há um primeiro modo em que, simplesmente, se vive como cristãos: «Um modo é que não façam litígios nem contendas, mas sejam submissos a todas as criaturas por amor a Deus e confessem que são cristãos» (XVI: FF 43). Há depois um segundo modo no qual, sempre dóceis aos sinais e à ação do Senhor Ressuscitado e ao seu Espírito de paz, se anuncia a fé cristã como manifestação em Jesus do amor de Deus por todos os homens. Impressiona-me muito aquele conselho de Francisco aos irmãos: “Anunciai o Evangelho, se for necessário, também com palavras”. É o testemunho!

Esta docilidade ao Espírito exige um estilo de vida e de anúncio sem espírito de conquista, sem vontade de proselitismo — esta é a peste — e sem uma intenção agressiva de refutação. Uma modalidade que entra em diálogo “a partir de dentro” com os homens e com as suas culturas, com as suas histórias, as suas diferentes tradições religiosas; uma modalidade que, coerentemente com o Evangelho, inclui também o testemunho até ao sacrifício da vida, como demonstram os luminosos exemplos de Charles de Foucauld, dos monges de Tibhirine, do bispo de Oran, Pierre Claverie e de tantos irmãos e irmãs que, com a graça de Cristo, foram fiéis com mansidão e humildade e morreram com o nome de Jesus nos lábios e a misericórdia no coração. E penso agora na não-violência como horizonte e sabedoria do mundo, para a qual a teologia deve olhar como seu elemento constitutivo. Neste ponto ajudam-nos os escritos e as praxes de Martin Luther King e Lanza de vasto e de outros “artífices” de paz. Ajuda-nos e encoraja-nos a memória do Beato Giustino Russolillo, que foi estudante desta Faculdade, e do padre Peppino Diana, o jovem pároco assassinado pela camorra, que também estudou aqui. E agora gostaria de mencionar uma síndrome perigosa que é a “síndrome de babel”. Pensamos que a “síndrome de Babel” é a confusão que tem origem no não entender o que o outro diz. Este é o primeiro passo. Mas a verdadeira “síndrome de Babel” consiste em não ouvir o que o outro diz e crer que eu sei aquilo que o outro pensa e o que ele dirá. Esta é a peste!

Exemplos de diálogo para uma teologia do acolhimento

“Diálogo” não é uma fórmula mágica, mas certamente a teologia é ajudada no seu renovar-se quando o assume seriamente, quando ele é encorajado e favorecido entre professores e estudantes, assim como com as outras formas do saber e com as outras religiões, sobretudo com o Judaísmo e com o Islão. Os estudantes de teologia deveriam ser educados para o diálogo com o Judaísmo e com o Islão a fim de compreenderem as raízes comuns e as diferenças das nossas identidades religiosas, e deste modo contribuir de maneira mais eficaz para a edificação de uma sociedade que aprecia a diversidade e favorece o respeito, a fraternidade e a convivência pacífica.

Educar os estudantes nisto. Eu estudei na época da teologia decadente, da escolástica decadente, na época dos manuais. Entre nós bricávamos, todas as teses teológicas eram experimentadas com este esquema, um silogismo: primeiro, as coisas parecem ser assim. Segundo, o catolocismo tem sempre razão. Terceiro, ergo... isto é, uma teologia de tipo defensivo, apologética, fechada num manual. Nós brincávamos assim mas era o que apresentávamos naquela época da escolástica decadente.

Procurar uma convivência pacífica dialógica. Com os muçulmanos somos chamados a dialogar para construir o futuro das nossas sociedades e das nossas cidades; somos chamados a considerá-los parceiros para edificar uma convivência pacífica, até quando se verificam episódios preocupantes por obra de grupos fanáticos inimigos do diálogo, como a tragédia da passada Páscoa no Sri Lanka. Ontem o Cardeal de Colombo disse-me isto: “depois de ter feito o que devia, dei-me conta de que um grupo de pessoas, de cristãos, queria ir ao bairro dos muçulmanos para os matar. Convidei o Imã para ir comigo de carro e juntos fomos lá para convencer os cristãos de que nós somos amigos, que aqueles são extremistas, aqueles não são dos nossos”. Esta é uma atitude de proximidade e de diálogo. Formar os estudantes no diálogo com os judeus implica educá-los para o conhecimento da sua cultura, do seu modo de pensar, da sua língua, a fim de compreender e viver melhor a nossa relação a nível religioso. Nas faculdades teológicas e nas universidades eclesiásticas devem ser encorajados cursos de língua e cultura árabe e judaica, e o conhecimento recíproco entre estudantes cristãos, judeus e muçulmanos.

Gostaria de dar dois exemplos concretos de como o diálogo que caracteriza uma teologia do acolhimento pode ser aplicado aos estudos eclesiásticos. Antes de tudo, o diálogo pode ser um método de estudo, além de ensino. Quando lemos um texto, dialogamos com ele e com o “mundo” do qual é expressão; e isto é válido também para os textos sagrados, como a Bíblia, o Talmude e o Alcorão. Depois, muitas vezes interpretamos um determinado texto em diálogo com outros da mesma época ou de épocas diversas. Os textos das grandes tradições monoteístas nalguns casos são o resultado de um diálogo. Pode haver casos de textos que são escritos para responder a perguntas sobre questões importantes da vida apresentadas por textos que os precederam. Também esta é uma forma de diálogo.

O segundo exemplo é que o diálogo pode ser feito como hermenêutica teológica num tempo e num lugar específicos. No nosso caso: o Mediterrâneo no início do terceiro milénio. Não é possível ler realisticamente tal espaço a não ser em diálogo e como uma ponte — histórica, geográfica, humana — entre a Europa, a África e a Ásia. Trata-se de um espaço no qual a ausência de paz produziu múltiplos desequilíbrios regionais e mundiais, e cuja pacificação, através da prática do diálogo, ao contrário, poderia contribuir em grande medida para iniciar processos de reconciliação e de paz. Giorgio La Pira dir-nos-ia que se trata, para a teologia, de contribuir para construir em toda a bacia mediterrânea uma “grande tenda de paz”, na qual possam conviver no respeito recíproco os diversos filhos do comum pai Abraão. Não devemos esquecer o pai comum.

Uma teologia do acolhimento é uma teologia da escuta

O diálogo como hermenêutica teológica pressupõe e comporta a escuta consciente. Isto significa ouvir também a história e a vivência dos povos que habitam o espaço mediterrâneo para poder decifrar as suas vicissitudes que relacionam o passado com o hoje e para poder divisar as suas feridas juntamente com as potencialidades. Trata-se em particular de captar o modo como as comunidades cristãs e cada uma das existências proféticas souberam — até recentemente — encarnar a fé cristã em contextos por vezes de conflito, de minoria e de convivência plural com outras tradições religiosas.

Esta escuta deve ser profundamente interna nas culturas e nos povos inclusive por outro motivo. O Mediterrâneo é precisamente o mar da mestiçagem — se não entendermos a mestiçagem não entenderemos o Mediterrâneo — um mar geograficamente fechado em relação aos oceanos, mas culturalmente sempre aberto ao encontro, ao diálogo e à inculturação recíproca. Igualmente há necessidade de narrações renovadas e partilhadas que — a partir da escuta das raízes e do presente — falem ao coração das pessoas, narrações nas quais seja possível reconhecer-se de modo construtivo, pacífico e gerador de esperança.

A realidade multicultural e plurireligiosa do novo Mediterrâneo forma-se com tais narrações, no diálogo que nasce da escuta das pessoas e dos textos das grandes religiões monoteístas, e sobretudo na escuta dos jovens. Penso nos estudantes das nossas faculdades de teologia, nos das universidades “laicas” ou de outras inspirações religiosas. «Quando a Igreja — e, podemos acrescentar, a teologia — abandona os esquemas rígidos e se abre à escuta pronta e atenta dos jovens, esta empatia enriquece-a, porque “permite que os jovens deem a sua colaboração à comunidade, ajudando-a a individuar novas sensibilidades e colocar-se perguntas inéditas”» (Exot. ap. pós-sin. Christus vivit, 65). Divisar novas sensibilidades: eis o desafio.

O aprofundamento do querigma faz-se com a experiência do diálogo que nasce da escuta e que gera comunhão. O próprio Jesus anunciou o reino de Deus dialogando com todos os tipos e categorias de pessoas do Judaísmo do seu tempo: escribas, fariseus, doutores da lei, publicanos, doutos, simples, pecadores. A uma mulher samaritana Ele revelou, na escuta e no diálogo, o dom de Deus e a sua própria identidade: abriu-lhe o mistério da sua comunhão com o Pai e da superabundante plenitude que brota desta comunhão. A sua divina escuta do coração humano abre, por sua vez, este coração ao acolhimento da plenitude do Amor e à alegria da Vida. Nada se perde com o diálogo. Ganha-se sempre. No monólogo todos nós perdemos, todos.

Uma teologia interdisciplinar

Uma teologia do acolhimento que, como método interpretativo da realidade, adota o discernimento e o diálogo sincero necessita de teólogos que saibam trabalhar juntos e de maneira interdisciplinar, superando o individualismo no trabalho intelectual. Precisamos de teólogos — homens e mulheres, presbíteros, leigos e religiosos — que, numa radicação histórica e eclesial e, ao mesmo tempo, abertos às inexauríveis novidades do Espírito, saibam evitar as lógicas autorreferenciais, competitivas e, de facto, ofuscantes que muitas vezes existem até nas nossas instituições académicas e escondidas, muitas vezes, entre as escolas teológicas.

Neste caminho contínuo de saída de si e de encontro com o outro, é importante que os teólogos sejam homens e mulheres de compaixão — friso isto: que sejam homens e mulheres de compaixão — compadecidos pela vida oprimida de muitos, pelas escravidões de hoje, pelas chagas sociais, pelas violências, pelas guerras e pelas enormes injustiças suportadas por tantos pobres que vivem nas margens deste “mar comum”. Sem comunhão nem compaixão, constantemente alimentadas pela oração — isto é importante: só se pode fazer teologia “de joelhos” — a teologia não só perde a alma, mas perde a inteligência e a capacidade de interpretar cristãmente a realidade. Sem compaixão, obtida do Coração de Cristo, os teólogos correm o risco de ser engolidos pela condição do privilégio de quem se coloca prudentemente fora do mundo e não partilha nada que seja arriscado com o maioria da humanidade. A teologia de laboratório, a teologia pura e “destilada”, destilada como a água, a água destilada, que não sabe de nada.

Gostaria de fazer um exemplo do modo como a interdisciplinaridade que interpreta a história pode ser um aprofundamento do querigma e, se for animada pela misericórdia, pode estar aberta à trans-disciplinaridade. Refiro-me em particular a todas as atitudes agressivas e guerreiras que marcaram o modo de habitar o espaço mediterrâneo de povos que se consideravam cristãos. Entre eles devem ser incluídas quer as atitudes e as praxes coloniais que muito plasmaram o imaginário e as políticas desses povos, quer as justificações de todos os tipos de guerras, quer todas as perseguições realizadas em nome de uma religião ou de uma pretensa pureza racial ou doutrinal. Também nós fizemos estas perseguições. Recordo-me que na Chanson de Roland, depois de ter vencido a batalha, os muçulmanos eram postos em fila, todos, diante da pia batismal, da pia batismal. Havia alguém com uma espada. E obrigavam-no a escolher: ou te batizas ou adeus! Vais para o outro mundo. Ou o batismo ou a morte. Nós fizemos isto. Em relação a esta complexa e dolorosa história, o método do diálogo e da escuta, guiado pelo critério evangélico da misericórdia, pode enriquecer muito o conhecimento e a releitura interdisciplinar, fazendo emergir também, por contraste, as profecias de paz que o Espírito nunca deixou de suscitar.

A interdisciplinaridade como critério para a renovação da teologia e dos estudos eclesiásticos comporta o compromisso de revisitar e reinterrogar continuamente a tradição. Revisitar a tradição! E voltar a questionar-se. Com efeito, a escuta como teólogos cristãos não se dá a partir de nada, mas de um património teológico que — precisamente dentro do espaço mediterrâneo — afunda as raízes nas comunidades do Novo Testamento, na rica reflexão dos Padres e em multíplices gerações de pensadores e testemunhas. É aquela tradição viva que chegou até nós que pode contribuir para iluminar e decifrar muitas questões contemporâneas. Sob condição de que seja relida com uma sincera vontade de purificação da memória, isto é, sabendo discernir quanto foi veículo da intenção originária de Deus, revelada no Espírito de Jesus Cristo, e quanto, ao contrário, foi infiel a esta intenção misericordiosa e salvífica. Não nos esqueçamos de que a tradição é uma raiz que nos dá vida: transmite-nos a vida para que possamos crescer, florescer e frutificar. Muitas vezes pensamos na tradição como num museu. Não! Na semana passada ou na anterior li uma citação de Gustav Mahler que dizia: “a tradição é a garantia do futuro, não a guardiã das cinzas”. É linda! Vivemos a tradição como uma árvore que vive e cresce. Já no século v Vicente de Lérins tinha entendido bem isto: o crescimento da fé, da tradição, com estes três critérios: annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. É a tradição! Mas sem a tradição não podemos crescer! A tradição para crescer, como a raiz para a árvore.

Uma teologia em rede

A teologia depois de Veritatis gaudium é uma teologia em rede e, no contexto do Mediterrâneo, em solidariedade com todos os “náufragos” da história. Na tarefa teológica que nos espera recordemos São Paulo e o caminho do cristianismo das origens que liga oriente e ocidente. Aqui, muito perto de onde Paulo desembarcou, não podemos deixar de recordar que as viagens do Apóstolo foram marcadas por evidentes vulnerabilidades, como o naufrágio no centro do Mediterrâneo (At 27, 9s). Naufrágio que faz pensar no de Jonas. Mas Paulo não foge, e aliás pode pensar que Roma é a sua Nínive. Pode pensar corrigir a atitude pessimista de Jonas resgatando a sua fuga. Agora que o cristianismo ocidental aprendeu de muitos erros e pontos críticos do passado, pode voltar às suas fontes esperando poder testemunhar a Boa Nova aos povos do oriente e do ocidente, do norte e do sul. A teologia — mantendo a mente e o coração fixos no «Deus misericordioso e piedoso» (cf. Gn 4, 2) — pode ajudar a Igreja e a sociedade civil a retomar o caminho em companhia de tantos náufragos, encorajando as populações do Mediterrâneo a rejeitar qualquer tentação de reconquista e de fechamento identitário. Ambos nascem, alimentam-se e crescem do medo. Não se pode fazer a teologia num ambiente de medo.

O trabalho das faculdades teológicas e das universidades eclesiásticas contribui para a edificação de uma sociedade justa e fraterna, na qual o cuidado da criação e a construção da paz são o resultado da colaboração entre as instituições civis, eclesiais e inter-religiosas. Trata-se antes de tudo de um trabalho na “rede evangélica”, ou seja, em comunhão com o Espírito de Jesus que é Espírito de paz, Espírito de amor que age na criação e no coração dos homens e das mulheres de boa vontade de qualquer raça, cultura e religião. Assim como a linguagem usada por Jesus para falar do Reino de Deus, também, analogamente, a interdisciplinaridade e o fazer rede pretendem favorecer o discernimento da presença do Espírito do Ressuscitado na realidade. A partir da compreensão da Palavra de Deus no seu contexto mediterrâneo originário é possível discernir os sinais dos tempos em contextos novos.

A teologia depois de “Veritatis gaudium” no contexto do Mediterrâneo

Sublinhei muito a Veritatis gaudium. Gostaria de agradecer publicamente aqui a presença de D. Zani, o qual foi um dos autores deste documento. Obrigado. Por conseguinte, qual é a tarefa da teologia depois de Veritatis gaudium no contexto do Mediterrâneo? Então, qual é a tarefa? Ela deve sintonizar-se com o Espírito de Jesus Ressuscitado, com a sua liberdade de ir pelo mundo e de chegar às periferias, até às do pensamento. Aos teólogos compete a tarefa de favorecer sempre de novo o encontro das culturas com as fontes da Revelação e da Tradição. As antigas arquiteturas do pensamento, as grandes sínteses teológicas do passado são minas de sabedoria teológica, mas elas não podem ser aplicadas mecanicamente às questões atuais. Trata-se de fazer tesouro delas para procurar caminhos novos. Graças a Deus, as fontes primárias da teologia, ou seja, a Palavra de Deus e o Espírito Santo, são inexauríveis e sempre fecundas; por isso pode-se e deve-se trabalhar na direção de um “Pentecostes teológico”, que permita que as mulheres e os homens do nosso tempo ouçam “na própria língua” uma reflexão cristã que responda à sua busca de sentido e de vida plena. Para que isto aconteça são indispensáveis alguns pressupostos.

Antes de tudo, deve-se partir do Evangelho da misericórdia, do anúncio feito pelo próprio Jesus e pelos contextos originários da evangelização. A teologia nasce no meio dos seres humanos concretos, que se encontram com o olhar e com o coração de Deus, o qual vai em busca deles com amor misericordioso. Fazer teologia também é uma ação de misericórdia. Gostaria de repetir aqui, desta cidade onde não há apenas episódios de violência, mas que conserva tantas tradições e exemplos de santidade — além de uma obra-prima de Caravaggio sobre as obras de misericórdia e o testemunho do santo médico Giuseppe Moscati — gostaria de repetir o que escrevi à Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina: «Até os bons teólogos, assim como os bons pastores, têm o odor do povo e da rua e, com a sua reflexão, derramam azeite e vinho sobre as feridas dos homens. A teologia seja expressão de uma Igreja que é “hospital de campo”, que vive a sua missão de salvação e cura no mundo. A misericórdia não é só uma atitude pastoral mas a própria substância do Evangelho de Jesus. Encoraja-vos a estudar como reflectir nas várias disciplinas — dogmática, moral, espiritualidade, direito, etc. — a centralidade da misericórdia. Sem a misericórdia a nossa teologia, o nosso direito, a nossa pastoral correm o risco de desmoronar na mesquinhez burocrática ou na ideologia, que por sua natureza quer domesticar o mistério» (Carta ao Grão Chanceler da “Pontifícia Universidade Católica Argentina” no centenário da Faculdade de Teologia, 3 de março de 2015). Pelo caminho da misericórdia a teologia defende-se de domesticar o mistério.

Em segundo lugar, é necessária uma séria assunção da história no âmbito da teologia, como espaço aberto ao encontro com o Senhor. «A capacidade de entrever a presença de Cristo e o caminho da Igreja na história tornam-nos humildes, e afastam-nos da tentação de nos refugiarmos no passado para evitar o presente. E foi esta a experiência de tantos, muitos estudiosos, que começaram, não digo ateus, mas um pouco agnósticos, e encontraram Cristo. Pois a história não se podia entender sem esta força» (Discurso aos participantes no Congresso da Associação dos professores de História da Igreja, 12 de janeiro de 2019).

É necessária a liberdade teológica. Sem a possibilidade de experimentar caminhos novos não se cria nada de novo, nem se dá espaço à novidade do Espírito do Ressuscitado: «A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 40). Isto significa também uma adequada revisão da ratio studiorum. Eu faria uma distinção sobre a liberdade de reflexão teológica. Entre os estudiosos é preciso ir em frente com liberdade; em última análise, será o magistério que dirá algo, mas não se pode fazer teologia sem esta liberdade. Mas na pregação ao Povo de Deus, por favor, não deveis ferir a fé do Povo de Deus com o debate de questões! As questões disputadas permaneçam só entre os teólogos. Esta é a vossa tarefa. Mas ao Povo de Deus é preciso dar a substância que alimenta a fé e que não a relativiza.

Por fim, é indispensável dotar-se de estruturas leves e flexíveis, que manifestem a prioridade dada ao acolhimento e ao diálogo, ao trabalho inter- e trans- disciplinar e em rede. Os estatutos, a organização interna, o método de ensino, o sistema dos estudos deveriam refletir a fisionomia da Igreja “em saída”. Tudo deve ser orientado nos horários e nos modos que favoreçam o mais possível a participação de quantos desejam estudar teologia: além dos seminaristas e dos religiosos, também os leigos e as mulheres quer leigas quer religiosas. Em particular, a contribuição que as mulheres estão a dar e podem oferecer à teologia é indispensável e por conseguinte a participação delas deve ser apoiada, como fazeis nesta Faculdade, onde há uma boa participação de mulheres como professoras e estudantes.

Este lugar maravilhoso, sede da Faculdade teológica dedicada a São Luís do qual hoje se celebra a festa, seja símbolo de uma beleza a compartilhar, aberta a todos. Sonho com faculdades teológicas onde haja convívio das diferenças, onde se pratique uma teologia do diálogo e da hospitalidade; onde se experimente o modelo do poliedro do saber teológico no lugar de uma esfera estática e desencarnada. Onde a pesquisa teológica seja capaz de promover um processo de inculturação exigente mas estimulante.

Conclusão

Os critérios do proémio da constituição apostólica Veritatis gaudium são evangélicos. O querigma, o diálogo, o discernimento, a colaboração, a rede — acrescentaria também a parrésia, que foi citada como critério, que é a capacidade de estar no limite, juntamente com o hypomonè, a tolerância, o estar no limite para ir em frente — são elementos e critérios que traduzem o modo como o Evangelho foi vivido e anunciado por Jesus e com o qual pode ser também hoje transmitido pelos seus discípulos.

A teologia depois da Veritatis gaudium é querigmática, uma teologia do discernimento, da misericórdia e da hospitalidade, que se põe em diálogo com a sociedade, as culturas e as religiões para a construção da convivência pacífica de pessoas e povos. O Mediterrâneo é uma matriz histórica, geográfica e cultural do acolhimento querigmático praticado com o diálogo e a misericórdia. Desta pesquisa teológica Nápoles é exemplo e laboratório especial. Bom trabalho!

 



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